domingo, 28 de novembro de 2010

Sonhei contigo


Sonhei contigo embora nenhum sonho
possa ter habitantes tu, a quem chamo
amor, cada ano pudesse trazer
um pouco mais de convicção a
esta palavra. É verdade o sonho
poderá ter feito com que, nesta
rarefacção de ambos, a tua presença se
impusesse - como se cada gesto
do poema te restituisse um corpo
que sinto ao dizer o teu nome,
confundindo os teus
lábios com o rebordo desta chávena
de café já frio. Então, bebo-o
de um trago o mesmo se pode fazer ao amor,
quando entre mim e ti se instalou todo este espaço -
terra, água, nuvens, rios e
o lago obscuro do tempo
que o inverno rouba à transparência
da fontes. É isto, porém, que faz com que
a solidão não seja mais
do que um lugar comum saber
que existes, aí, e estar contigo
mesmo que só o silêncio me
responda quando, uma vez mais
te chamo.
.
Autor: Nuno Júdice
Foto: PA weł

quarta-feira, 24 de novembro de 2010

O medo


O medo é uma brasa a arder no coração das flores
mata de sede como as searas que a chuva abandona
e o chão abre-o em fendas para que o pranto
lhe regue a colheita de mágoas.
O medo é um cardo
teve o cheiro do nardo e a sombra do trigo
antes de ser semente enlouquecida
na agonia de germinar e ganhar raíz em terra de ninguém.
O medo tem dedos como ferros
apertados na garganta sem palavras.
.
Foto:Żaba-Ewa

segunda-feira, 22 de novembro de 2010

Escrevo pássaros e nada sei


Escrevo pássaros e nada sei
do corpo deles nem das suas
inclinações – nada sei do amor
tão pleno de falsificações. Se canto,
se escrevo assim às escuras da noite
do meu lençol
é porque não sei incorporar
os ruídos, as veredas da casa
nem olhar para o lado
e ver por dentro
o rosto da amada, o sono
da filha – os ritmos da morte
que dão e só eles são
sabor
à passagem do tempo.


Autor :Casimiro de Brito in «Livro das Quedas

sexta-feira, 19 de novembro de 2010

Há quem diga


Há quem diga
que o poema só vale uma ilusão
de salvar do naufrágio a certeza
arrumada além-mar do coração.
.
Há quem jure
que a alegria vale menos que a pobreza
de carpir a presença da saudade
no sorrir macilento da tristeza.
.
Também dizem
que um poeta só vale a ingenuidade
a cuidar que é verdade o seu amar
sem julgar o que é falso ou realidade.
.
Ainda assim,
é no todo que eu busco o meu trovar
sem banir a contenda que me assola
no silêncio dos cantos por achar.

.
Autor:Nilson Barcelli http://nimbypolis.blogspot.com/
Foto:dgadzik

quarta-feira, 17 de novembro de 2010

desilusão

gritei
mas ninguém
me ouviu
chamei
ninguém
respondeu

chorei
e enterrei
o sonho que me morreu



Autor:Vieira da Silva
In Marginal Pág.17
Foto: Kuszący

sexta-feira, 12 de novembro de 2010

DÉDALO DE BRUMAS

Só queríamos um espaço
rasgado
onde fosse possível voar
sem olhar os pássaros
um silêncio de pavio
a preto e branco
um qualquer infinito
onde cruzássemos outros timbres
e fossemos a última folha
do outono
em pleno voo


Só queríamos afagar a nudez
em todos os póros
e foi tão pouco
que ainda hoje te procuro
neste dédalo de brumas
precisamente
no lado incerto do espelho
onde me dispo.
.
Autor: mar arável http://mararavel.blogspot.com/
Foto:mAja

quinta-feira, 11 de novembro de 2010

Quando eu morrer


Quando eu morrer, não digas a ninguém que foi por ti.
Cobre o meu corpo frio com um desses lençóis
que alagámos de beijos quando eram outras horas
nos relógios do mundo e não havia ainda quem soubesse
de nós; e leva-o depois para junto do mar, onde possa
ser apenas mais um poema - como esses que eu escrevia
assim que a madrugada se encostava aos vidros e eu
tinha medo de me deitar só com a tua sombra. Deixa

que nos meus braços pousem então as aves (que, como eu,
trazem entre as penas a saudades de um verão carregado
de paixões). E planta à minha volta uma fiada de rosas
brancas que chamem pelas abelhas, e um cordão de árvores
que perfurem a noite - porque a morte deve ser clara
como o sal na bainha das ondas, e a cegueira sempre
me assustou (e eu já ceguei de amor, mas não contes
a ninguém que foi por ti). Quando eu morrer, deixa-me

a ver o mar do alto de um rochedo e não chores, nem
toques com os teus lábios a minha boca fria. E promete-me
que rasgas os meus versos em pedaços tão pequenos
como pequenos foram sempre os meus ódios; e que depois
os lanças na solidão de um arquipélago e partes sem olhar
para trás nenhuma vez: se alguém os vir de longe brilhando
na poeira, cuidará que são flores que o vento despiu, estrelas
que se escaparam das trevas, pingos de luz, lágrimas de sol,
ou penas de um anjo que perdeu as asas por amor.
.
Autor :Maria do Rosário Pedreira
Foto:- anchor

segunda-feira, 8 de novembro de 2010

Tempo de Vésperas...



busco antigos sinais e exorcizo o tempo
e as entranhas da palavra que soltam o grito
e a noite com seu manto estrelado...

calam-se os nomes que soletro!...

bem sei que o galo canta noutro ritmo
que (me) dizem diurno - apenas adornos coloridos
e um céu estranho...

a alvorada não lhe pertence
nem decifra as cores
nem a mágica poção
nem o cálice
que erguemos...

deixo assim que o tempo vadio
traga o regresso - que em delírio expio!
e recolho as vestes
para em esperança nua
beber a hora (in)certa!

domingo, 7 de novembro de 2010

há-de flutuar uma cidade


pensava eu... como seriam felizes as mulheres
à beira mar debruçadas para a luz caiada
remendando o pano das velas espiando o mar
e a longitude do amor embarcado
por vezes
uma gaivota pousava nas águas
outras era o sol que cegava
.
e um dardo de sangue alastrava pelo linho da noite
os dias lentíssimos... sem ninguém
e nunca me disseram o nome daquele oceano
esperei sentada à porta... dantes escrevia cartas
punha-me a olhar a risca de mar ao fundo da rua
assim envelheci... acreditando que algum homem ao passar
se espantasse com a minha solidão

(anos mais tarde, recordo agora, cresceu-me uma pérola no coração. mas estou só, muito só, não tenho a quem a deixar.)

um dia houve
que nunca mais avistei cidades crepusculares
e os barcos deixaram de fazer escala à minha porta
inclino-me de novo para o pano deste século
recomeço a bordar ou a dormir
tanto faz
sempre tive dúvidas que alguma vez me visite a felicidade
.
Autor: Al Berto